Leonardo Uller só conseguiu fazer doação no hospital 9 de Julho depois de muita insistência. Procurada, instituição hospitalar diz que está apurando caso


O estudante de Jornalismo Leonardo Uller, 20, foi na última quarta-feira (26) até o hospital paulistano 9 de Julho, na região da Avenida Paulista, para doar sangue. Mas segundo Leonardo, a instituição não quis receber a sua doação. O motivo para rejeição teria sido o fato de o jovem ser homossexual.
Doador frequente, Leonardo procurou o hospital porque está com um tio internado na UTI do 9 Julho. Aliás, a própria instituição pediu aos familiares do enfermo que fizessem as doações. Mas o estudante só conseguiu dar seu sangue depois muita insistência – e após ouvir comentários desagradáveis de funcionários.
Arquivo pessoal
Homossexual, Leonardo Uller sofreu constrangimentos ao tentar doar sangue
“Não teve nenhuma dificuldade até a consulta médica, fui até bem recebido na triagem. O problema aconteceu na entrevista com a médica, quando ela me questionou seu eu mantinha relações com outros homens. Respondi que sim, apesar de achar estranha a pergunta. Doei sangue outras vezes e nunca ouvi este tipo de questão”, relata Leonardo.
O constrangimento foi ainda maior no prosseguir da conversa. “Na hora, ela me falou que não podia aceitar meu sangue porque eu sou gay. Fiquei chocado, expliquei que não apresento nenhum comportamento de risco, não sou promíscuo, sempre uso preservativo e tenho o mesmo namorado há mais de 12 meses”, conta Leonardo.
De acordo com Leonardo, a médica percebeu seu incomodo com a situação e tentou minimizar o problema. Uma enfermeira também fez comentários que o desagradaram. “Ouvi coisas como: ‘Você é uma exceção entre os gays, a maioria é promíscua’ e “Se você estivesse doente, também não ia querer um sangue ruim’”, descreve o estudante, que mandou um e-mail relatando o acontecido à direção do Nove Julho.
Na noite da última quinta-feira (27), Leonardo voltou ao Nove de Julho, atendendo um convite da direção da instituição. “Conversei com a diretora técnica, a Dra. Regina Tranchesi. Ela se desculpou em nome do hospital e admitiu que a postura da médica não estava correta ao recusar a minha doação com a justificativa de eu ser gay”, explica o estudante, que ouviu na reunião um promessa de mudança.

“Eles prometeram mudar a triagem e não perguntar mais sobre a orientação sexual de ninguém. Também disseram que a médica que me atendeu vai passar por uma reciclagem”, revela Leonardo. O estudante conta ainda que o 9 Julho prometeu apurar o caso dele e dar uma resposta oficial até o próximo dia 15 de abril.
Procurada pela reportagem, a assessoria do hospital 9 de Julho preferiu não indicar nenhum membro da sua direção para falar sobre o ocorrido, mas enviou uma nota (veja abaixo) confirmando que está apurando o caso.
“O Hospital 9 de Julho é veementemente contra qualquer tipo de discriminação por seus colaboradores ou parceiros e tem como premissas básicas o cumprimento da legislação e o compromisso com a segurança na assistência ao paciente”, afirmou a direção do hospital na nota.
Apesar de ainda indignado com a situação pela qual passou, Leonardo pretende aguardar o resultando da apuração interna do 9 de Julho antes de tomar qualquer medida legal contra a instituição.
“Vou dar um voto de confiança. Não me trataram com respeito na primeira vez, mas vou aguardar o resultado da apuração e também o cumprimento das promessas. Espero que eles se desculpem publicamente, que deem exemplo para que isso não se repita em nenhum lugar”, afirma o estudante.
NORMAS CONTRADITÓRIAS
Ouvida em reportagem do iGay sobre o tema doação de sangue por homossexuais, a presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB SPAdriana Galvão explicou que as normas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre o assunto são contraditórias.
Reprodução/Facebook
Adriana Galvão da OAB aponta incoerência nas regras da Anvisa sobre doação de sangue
A Resolução de 14 de junho de 2004 (RDC nº. 153) da Anvisa, que dita os procedimentos de hemoterapia no Brasil, segue o direcionamento internacional ditado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Ela define que homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses que antecedem a triagem clínica são inaptos temporariamente para doação de sangue.
Por outra lado, a mesma Anvisa publicou em 2011 uma Portaria (MS nº 1.353, de 13.06.2011 DOU 1 de 14.06.2011) que complementa a resolução, dizendo que "A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria.”
Adriana apontou a necessidade da Anvisa aperfeiçoar suas normas e corrigir esta incongruência. “As referidas normalizações estão contraditórias entre si e acredito que a prevalência deve ser da Portaria de 2011, que permite a doação independente de orientação sexual. A resolução de 2004 é discriminatória, pois estabelece exigência somente para os HSH (sigla usada para se referir aos homossexuais masculinos) e não para homens e mulheres heterossexuais ou lésbicas. A constitucionalidade desta resolução é extremamente questionável, ao meu ver fere frontalmente a Constituição Federal, que veda discriminações”, concluiu a jurista da OAB.
Veja a integra da reposta do hospital 9 de Julho sobre o caso:
Em relação ao caso do doador Leonardo Uller, o Hospital 9 de Julho informa que as doações de sangue realizadas no banco de sangue que atende a instituição seguem a legislação vigente - Portaria 2712, de 12/11/2013 do Ministério da Saúde.
Com o objetivo de garantir a saúde do receptor e do doador, a legislação determina que todos os candidatos à doação em qualquer banco de sangue passem por uma triagem clínica que envolve uma entrevista individual padronizada, que todo sangue doado seja submetido a testes rigorosos e, se aprovado, seja disponibilizado de acordo com o tipo sanguíneo do paciente.
Ressaltamos que caso seja identificada alguma alteração, o doador é notificado pelo banco de sangue e convocado para, se necessário, repetir os exames e receber orientação médica. A ausência de notificação pelo banco de sangue indica que o sangue está apto a ser doado e o processo seguirá normalmente.
Ressaltamos que o Hospital 9 de Julho é veementemente contra qualquer tipo de discriminação por seus colaboradores ou parceiros e tem como premissas básicas o cumprimento da legislação e o compromisso com a segurança na assistência ao paciente.
O Hospital 9 de Julho informa que já está apurando o caso.
Atenciosamente,
Hospital 9 de Julho
*Com reportagem de Iran Giusti